Introdução
Quando o vento percorre os páramos selvagens da antiga Grã-Bretanha, carrega ecos de histórias entrelaçadas nos próprios ossos da terra — relatos de bravura, glória e do alto preço da grandeza. Dentre todas essas histórias, nenhuma brilha mais intensamente que a lenda de Beowulf, cujo nome ainda é pronunciado com reverência em torno de lareiras crepitantes e sob os tetos abobadados de antigos salões. O tempo já havia prateado sua barba e aprofundado as rugas de seu semblante, mas o espírito de Beowulf, forjado na fornalha da juventude, permaneceu inabalável. Já não era o jovem guerreiro impetuoso que derrotou Grendel e sua mãe; agora, era rei, sustentáculo de seu povo, uma relíquia viva de uma era que se esvaía, quando heróis decidiam o destino de reinos com as próprias mãos. Porém, o destino jamais repousa. No crepúsculo dourado do reinado de Beowulf, uma inquietação se espalhou pelas pacíficas terras dos geats — uma perturbação que não nasceu de intrigas mortais, mas das profundezas da terra, onde a ganância ancestral repousa sobre leitos de ouro acumulado. Um escravo, movido pelo desespero, penetrou no túmulo de um dragão e furtou uma taça adornada de joias, despertando a fúria da criatura. Fogo e destruição se seguiram, e a ira do dragão ameaçou consumir tudo o que Beowulf havia construído. O povo voltou-se para seu rei envelhecido, certo de que apenas aquele que um dia enfrentou monstros poderia conter esse novo terror. O ar se encheu de apreensão enquanto Beowulf, novamente trajando sua cota de malha, preparava-se para encarar o dragão, ainda que a idade tivesse enfraquecido seus músculos e deixado o corpo dolorido pelas cicatrizes do passado. Ao entardecer, quando os últimos raios de sol douraram o mundo, Beowulf sabia que enfrentaria sua última provação. Não por riqueza ou fama, mas por amor — amor ao seu povo, ao legado da coragem, à honra que o tempo ou o fogo jamais poderiam apagar. Assim começa o último ato da vida de Beowulf: uma narrativa de heroísmo e sacrifício que ecoaria por gerações ainda por nascer.
O Despertar do Dragão
Por muitos anos, sob o governo sábio de Beowulf, a terra dos geats viveu em paz. As aldeias prosperavam, crianças brincavam sem medo nos campos, e o salão do rei se enchia de risos e canções. Mas, sob as colinas ondulantes, no profundo túmulo de Earnaness, dormia uma criatura tão antiga quanto a própria terra — um dragão colossal e terrível, enroscado sobre um monte de tesouros acumulados ao longo de séculos. O sono do dragão era pesado e sem sonhos, protegido por encantamentos que mantinham os mortais afastados. Contudo, nada feito pelas mãos humanas, nem o passar do tempo, poderiam blindar tal riqueza do alcance do desesperado.

Tudo começou com um único gesto impensado. Um escravo fugitivo, trêmulo de fome e temor, tropeçou na caverna do dragão buscando escapar da ira do senhor. A luz tremulante da tocha roubada revelou cálices dourados, pratos cravejados de pedras preciosas, e ossos de ladrões há muito mortos espalhados entre as riquezas. Tomado pelo medo, o escravo agarrou uma taça cravejada de joias e fugiu durante a noite, acreditando que o mundo externo seria menos mortal que as profundezas que deixava para trás.
O dragão acordou para o roubo com uma fúria ancestral. Seus olhos, ardendo como brasas gêmeas, percorreram a câmara profanada. O cheiro humano — pungente, acre e imperdoável — impregnava o ar parado. Com um rugido que estremeceu a terra, o dragão irrompeu do covil, deixando atrás de si rastros de fumaça e labaredas. Suas asas lançavam sombras monstruosas nos campos enquanto alçava voo, despejando fogo sobre as aldeias abaixo. Naquela noite, cada teto em Earnaness reluzia em vermelho, e os aterrorizados geats se amontoavam, observando o mundo em chamas.
A notícia chegou a Beowulf em seu salão quando a fumaça tomava o horizonte. Ele ouviu em silêncio os relatos de dor: crianças órfãs, campos devastados, tesouros reduzidos a cinzas. Não era estranho ao sofrimento, mas algo no olhar suplicante dos aldeões reacendeu uma chama familiar em seu peito. Embora suas mãos já tremessem com a idade, sua determinação nunca cedia. Chamou seus escudeiros, os leais thanes que já o acompanharam à escuridão tantas vezes. Entre eles estava Wiglaf, o mais jovem e fiel, com um brilho de destino nos olhos.
Beowulf dirigiu-se a seus homens com uma voz que ecoou no salão sombreado: “Não busco esta luta por glória ou ouro. O tempo dos cânticos da juventude já passou. Enfrentarei este dragão não como herói, mas como rei, que precisa lutar pelo povo, mesmo quando o destino se vira contra ele. Se eu cair, que meus feitos falem mais alto que minhas palavras.” Os thanes, ligados por lealdade, se prepararam para o combate, ainda que o medo corroesse seus corações. Nenhum, porém, duvidava da coragem de seu rei, cujas antigas vitórias se tornavam ainda mais brilhantes em meio à escuridão.
À medida que a noite avançava, Beowulf contemplava a paisagem à luz da lua, relembrando sua primeira batalha contra Grendel. Lembrava-se do gosto do medo, do peso do destino, e de como as lendas nascem nas encruzilhadas das escolhas. Agora, forjaria seu último legado nas chamas da determinação. O amanhecer seguinte o veria marchar rumo ao covil do dragão, espada em punho, pronto para enfrentar o destino que o aguardava.
A Marcha para Earnaness
O dia seguinte ao ataque do dragão amanheceu frio e áspero, como se o próprio mundo lamentasse a paz despedaçada. Beowulf reuniu seus thanes à primeira luz, rostos marcados pelo cansaço, mas firmes na determinação. O rei vestiu sua armadura ancestral — cota de malha que o protegera em inúmeras batalhas, seus elos escurecidos pelo tempo, mas tão firmes quanto antes. Sobre os ombros, lançou uma velha capa cinzenta como nuvens de tempestade, e prendeu à cintura a espada Naegling, forjada, diziam, por mãos de gigantes.

O grupo partiu do salão real — em menor número que nos dias de glória de Beowulf, mas com fidelidade intacta. Wiglaf seguia ao lado de Beowulf, portando um novo escudo — amplo, cercado de ferro — obra dos melhores ferreiros de Geatland. O caminho até Earnaness serpenteava por charnecas forradas de urze e samambaias, cruzando riachos ainda cobertos de gelo. Pelo caminho, aldeões em pequenos grupos se reuniam em silêncio, olhares repletos de esperança e temor enquanto viam o rei passar. Alguns murmuravam preces aos deuses antigos; outros choravam baixinho, conscientes do significado daquela jornada.
Ao se aproximarem do túmulo, a terra exibia novas feridas: solo enegrecido pelo fogo do dragão, rebanhos dispersos e ossos de gado clareando sob o céu cinzento. O covil do dragão erguia-se à frente, montículo de terra e pedras, repleto de rachaduras por onde escapavam fumaça e calor. O ar estava carregado do odor de terra queimada e carne tostada, e o chão tremia sob seus pés conforme a fera lá dentro acordava inquieta.
Beowulf parou à margem de um bosque em ruínas, observando seus companheiros. Falou em voz baixa, o peso dos anos soando em suas palavras: “Esta não é uma luta para os jovens ou despreparados. Peço apenas aos que estejam dispostos a enfrentar a morte ao meu lado que prossigam. Pois esta será, juntos, nossa última batalha, seja qual for a vontade do destino.” Os thanes trocaram olhares — alguns pálidos de medo, outros rubros de determinação. Ao final, apenas Wiglaf avançou sem hesitar, sua lealdade superando o temor. Os demais recuaram, a culpa e a tristeza marcando seus rostos.
Beowulf assentiu, mesclando orgulho e pesar. Virou-se para Wiglaf e pousou a mão em seu ombro. “Você carrega o que é preciso para ser um verdadeiro herói, Wiglaf. Se eu tombar, que fique claro: minha fé em você foi total.” As palavras pairaram no ar frio, enquanto Beowulf guiava Wiglaf até a entrada do túmulo. Lá dentro, a escuridão pulsava ameaçadora. A respiração do dragão ecoava pelos túneis, como trovão distante.
Na entrada, Beowulf ergueu a voz em desafio: “Criatura de fogo e ganância! Eu sou Beowulf, filho de Ecgtheow, rei dos geats! Enfrente-me se tiver coragem!” Suas palavras soaram ousadas e desafiadoras. Seguiu-se um breve silêncio, rompido apenas pelo sibilo do vapor quando o dragão acordou. Então, com um rugido que fez as pedras tremerem, o dragão surgiu, olhos reluzindo como sóis gêmeos. Suas escamas cintilavam em tons de ouro e bronze, e a fumaça subia das narinas enquanto avaliava os adversários.
Beowulf apertou o punho de Naegling. Sentiu o coração bater forte no peito — sensação ao mesmo tempo conhecida e confortadora. Olhou uma última vez para Wiglaf, e avançou, sabendo que cada passo o aproximava do derradeiro julgamento do destino.
A Batalha em Fogo e Sombra
O corpo do dragão bloqueava a entrada do túmulo, maciço e sinuoso, olhos cravados em Beowulf com ódio ancestral. Desenrolou-se lentamente, provando o ar com a língua bifurcada, chamas dançando entre dentes afiados. O ar ficou sufocante; cada respiração trazia gosto de enxofre e medo. Beowulf ergueu o escudo quando o dragão lançou sua primeira rajada de fogo: torrente tão intensa que derretia areia e fazia as pedras fumegarem.

Beowulf avançou, escudo erguido. A explosão o atingiu em cheio, mas ele seguiu firme, botas cavando sulcos na terra carbonizada. A lâmina de Naegling faiscou, abrindo um corte superficial no focinho couraçado do dragão. A criatura recuou, mais surpresa que ferida, e vergastou a cauda num arco devastador. Beowulf foi lançado de lado, chocando-se contra um rochedo. Levantou-se trôpego, machucado, mas resoluto, mesmo com fumaça subindo das bordas de seu escudo.
Wiglaf correu para seu lado, escudo em punho, desafiando o perigo com olhar determinado. “Lutamos juntos, meu rei!” gritou em meio ao caos. Beowulf assentiu, grato pela lealdade que sobrevivia ao medo. Juntos avançaram, circulando o dragão. A cauda do monstro açoitou de novo, destruindo pedras e lançando estilhaços. Wiglaf atacou, ferindo de leve o flanco da fera. Furioso, o dragão lançou outra rajada de fogo. Beowulf protegeu Wiglaf, sua armadura brilhando vermelha sob o calor.
A luta continuou feroz, ar carregado de chamas e cinza. O solo tremia sob o peso do dragão; cada golpe de cauda ou garra era uma força da natureza. Os braços de Beowulf tremiam de exaustão, a respiração ofegante, mas ele não cedia; cada golpe de Naegling era movido pela pura vontade. Até que, finalmente, encontrou uma brecha — cravou a espada numa parte mais macia sob o queixo do dragão. A criatura uivou, sangue negro e fumegante jorrando da ferida.
Mas Naegling quebrou com o impacto, sua lâmina ancestral estilhaçando-se nas mãos de Beowulf. O dragão revidou com fúria, cravando as garras na lateral do rei. Beowulf caiu de joelhos, sangue encharcando a armadura. Wiglaf colocou-se entre eles, golpeando com sua espada. O dragão se voltou a ele, berrando de dor ao ser ferido. Os dois guerreiros lutaram lado a lado, suor e sangue misturando-se no calor da batalha.
Com suas últimas forças, Beowulf sacou uma adaga do cinto. Reunindo toda a coragem e memória, lançou-se sobre o pescoço da criatura, cravando a lâmina fundo em sua carne. O dragão contorceu-se em agonia, suas chamas esmorecendo, até que finalmente tombou, asas colapsando num último estertor. Fumaça saía de suas narinas enquanto sua vida se exauria.
Beowulf desabou ao lado do cadáver, mortalmente ferido, mas vitorioso. Wiglaf ajoelhou-se ao seu lado, lágrimas correndo pelo rosto sujo de fuligem. Naquele instante, entre os restos da batalha e o corpo esfriando do dragão, uma era chegava ao fim — e a lenda do herói era selada para sempre.
Conclusão
Quando a fumaça se dissipou e o silêncio tomou conta de Earnaness, Wiglaf acolheu Beowulf em seus braços diante do corpo esfriando do dragão. O velho rei respirava com dificuldade, seu sangue se misturando à terra queimada. Mas seus olhos estavam lúcidos, refletindo não o medo ou arrependimento, mas um orgulho feroz que superava qualquer dor. Em palavras baixas, Beowulf confiou a Wiglaf seus últimos desejos: que os tesouros fossem usados não para ganho próprio, mas em benefício do povo, e que um grande túmulo fosse erguido no alto do penhasco para que todos os navegantes se lembrassem do rei que enfrentou a morte sem vacilar. Wiglaf prometeu, as lágrimas correndo sem vergonha pelo rosto. Em volta deles, a aurora rompeu sobre os páramos, banhando o mundo em dourado suave. Logo a notícia da morte de Beowulf se espalhou; a dor misturou-se à admiração quando os geats vieram lamentar o rei. Cumprindo sua vontade, ergueram um grandioso túmulo junto ao mar, enterrando-o com tesouros arduamente conquistados. Menestréis compuseram músicas sobre seus feitos, e crianças pronunciavam seu nome com espanto. Mas, mais do que tudo, permaneceu a lição de sua vida: a verdadeira grandeza não está em ouro acumulado ou vitórias passageiras, mas na coragem que resiste mesmo quando a esperança se apaga. Por meio do sacrifício e da lealdade, Beowulf transcendeu do homem ao mito, sua história ecoando eternamente nas margens varridas pelo vento e nos céus estrelados da antiga Grã-Bretanha.