Introdução
Calhaus de neve se depositavam em mantos silenciosos sobre o emaranhado de postes de luz e vitrines envelhecidas, pintando Frostvale em suaves tons de branco e prata. Na extremidade da cidade, escondido além do portão de ferro de um museu abandonado, repousava um artefato sussurrado em lendas: o Espelho da Rainha da Neve. Há muito se dizia que ele possuía o poder de congelar o reflexo de uma alma, e ele permanecera trancado por décadas, acumulando geada em sua moldura dourada. Na primeira noite de dezembro, sob o brilho de uma lua crescente, Jonas Hale — um jovem aprendiz de vidraceiro — aventurou-se no interior, atraído por sonhos que pairavam nas bordas da memória. Seu coração pulsava com partes iguais de curiosidade e temor enquanto atravessava o piso de mármore. Quando a caixa de vidro estilhaçou-se, lançando fragmentos cristalinos que voaram como luzes estelares, Jonas estendeu a mão para apanhar um pedaço que caía. Num instante, tentáculos gelados apertaram seu braço, e vozes sussurradas faiscaram em sua mente. O mundo ao seu redor ficou turvo, a geada crepitando por suas veias. Quando os moradores da cidade o encontraram, o fragmento do espelho já se havia cravado profundamente sob sua pele, prendendo-o para sempre ao domínio frio da Rainha. Amaldiçoado pelo caco e assombrado por visões fragmentadas, Jonas despertou para perceber que seu destino — como vidro rachado — ainda podia ser refeito. Mas, para isso, ele teria de enfrentar a própria Rainha da Neve e trilhar um caminho de gelo e incerteza que se estendia muito além das ruas nevadas de Frostvale.
Reflexão Estilhaçada
Jonas despertou na manhã seguinte ao acidente com uma dor surda pulsando sob a pele. A mão latejava onde o fragmento gelado perfurara o calor de sua carne. Ele sentou-se em sua cama que rangia, o coração batendo contra as costelas como um pássaro preso. As vidraças brilhavam com a luz pálida do amanhecer, que tremia em sintonia com sua dor. Uma a uma, as memórias retornaram: o estilhaçar do vidro na galeria abandonada, o arranhar do gelo em seu pulso, o eco de promessas sussurradas numa voz não inteiramente sua. Jonas pressionou a palma contra o antebraço, fazendo careta ao notar os cacos brilhando sob a pele, cada aresta chanfrada desenhando novas linhas de geada por suas veias. Ele percebeu rastros de cristais de gelo no catre ao seu lado, reluzindo com uma luz forte demais para o amanhecer de meados de inverno. O medo subiu-lhe à garganta como tinta derramada, manchando o ar matinal com incertezas. Até respirar lhe pareceu precário, como se cada inspiração convocasse um frio mais agudo, que cortava o osso e o espírito da mesma forma. Ele lançou as pernas para fora da cama, as botas rangendo no assoalho, e cambaleou até o toucador. Um espelho trincado repousava sobre a superfície, fragmentos faltando em sua moldura como se com fome por mais vidro. O reflexo de Jonas vacilava entre a curiosidade juvenil e algo mais antigo, distante, como se outra vida tremeluzisse por trás daqueles olhos. Ele cerrou o punho, testando o peso da maldição oculta sob a pele. A cada pulsar, o fragmento de gelo vibrava em sintonia com uma batida de coração que não era inteiramente sua. Sussurros escaparam-lhe em sílabas semiformadas — fragmentos de uma língua que ele nunca estudara e memórias que não reconhecia. Falavam de reinos congelados e almas partidas, de promessas seladas em cristal e sangue. Jonas tremeu ao vislumbrar-se no vidro estilhaçado, refletindo não uma, mas várias possibilidades de sua própria ruína. Sabia que o fragmento se enraizara, prendendo-o a forças além das fronteiras nevadas de Frostvale. Sob o sol nascente, percebeu que retornar às ruas familiares de sua terra natal não lhe oferecia nenhum refúgio. O fragmento dentro dele cantava para um lugar mais profundo, chamando-o por trilhas que nunca percorrera. E assim ele se ergueu, impulsionado por igual medida de pavor e desafio, determinado a enfrentar o poder do caco antes que este o consumisse por completo. Seu sopro formou nuvens leitosa que flutuavam rumo ao teto. Envolveu um grosso cachecol ao redor do pescoço, apesar do leve frio matinal, como se guardasse a alma da geada interior. Jonas hesitou à porta do quarto, mão pressionada contra a madeira clara, como se ela pudesse se estilhaçar ao toque. Olhou para o brilho rubro da lareira, ansiando por um calor que parecia impossivelmente distante. O sussurro do fragmento pairava na beira de sua mente, como uma canção meio lembrada, atraindo-o para lugares que ainda não podia imaginar. Ele exalou e avançou pelo corredor, onde seu reflexo num segundo espelho, mais velho, piscou tempo suficiente para revelar uma coroa de geada pairando sobre sua cabeça. Então a visão desapareceu. Jonas engoliu seco e seguiu em frente, sabendo que seu destino se escreveria em cacos de gelo e seria forjado pelo fogo de sua própria determinação. Quando a porta da frente se abriu com um rangido, Jonas sentiu o peso de cada floco de neve que cruzava o umbral. Era uma procissão silenciosa de espíritos do inverno a conduzi-lo numa jornada que não podia negar. Com o coração ecoando o estilhaçar daquele espelho, partiu em direção à pálida luz da manhã.

Fragmentos da Caçada
Nos dias seguintes, Jonas descobriu que a influência do fragmento se entrelaçava em cada faceta de seu ser. Rotinas comuns se deformaram em rituais crípticos: a geada matinal do lado de fora da janela organizava-se em padrões semelhantes a runas, e os postes de luz piscavam em pulsos rítmicos que pareciam soletrar uma língua oculta. Jonas tentou sacudir as visões que caíam sobre suas horas de vigília como flocos de neve estilhaçados; viu picos montanhosos distantes reluzindo ao luar, ouviu risadas ecoando em salões vazios e sentiu o puxar de melodias ancestrais que se agitavam sob sua pele. Cada alucinação trazia um fragmento do domínio da Rainha da Neve: jardins gelados adornados com rosas enfeitadas de geada, corredores esculpidos em geleiras vivas e rios prateados correndo sob um céu de auroras cintilantes. Apesar do terror em seus sonhos, ele não podia negar o fascínio do caco: ele prometia respostas a perguntas que ele ainda não aprendera a formular. Partiu para os arredores da cidade, onde boatos falavam de uma eremita que certa vez afirmara possuir parte daquele vidro encantado. O caminho até sua cabana serpenteava por bosques de bétulas salpicados de orvalho congelante e atravessava um riacho congelado que chiar sob os pés. Jonas apertou o casaco com força, sentindo o pulso do fragmento batendo em sintonia com seus passos. O pacote de pistas que carregava ficava mais pesado a cada milha: um mapa esfarrapado esboçado em tinta prateada, uma fotografia antiga mostrando um trono feito de gelo, e metade de um verso de uma invocação que falava de cura e libertação. Ao anoitecer, encontrou a porta da eremita envolta em névoa rastejante e luz de lanterna. A figura interior fitou-o através de olhos opacados, o sopro entrelaçando constelações de geada no vidro da janela. Jonas ofereceu seu fragmento, esperando negociar orientações, mas a eremita apenas balançou a cabeça. Ela falou de um lugar de repouso final, muito além das fronteiras de inverno de Frostvale, onde a Rainha da Neve guardava seu coração aprisionado em espelho. Jonas sentiu o medo subir como vento de tempestade, mas o fragmento chispeou contra suas costelas, incitando-o a seguir em frente. Agradeceu à eremita, que lhe entregou uma bússola de prata dita apontar para fragmentos escondidos no reino da Rainha. Naquela noite, com a bússola brilhando suavemente no bolso, Jonas deitou-se sob um edredom de retalhos de lã e pensou em casa. O fragmento sussurrou sonhos de poder e perigo em igual medida. Jonas decidiu que reuniria cada pedaço de vidro quebrado e reconstruiria o Espelho da Rainha com suas próprias mãos — então, ou libertaria seu próprio coração, ou ficaria para sempre preso ao gelo e à sombra. O amanhecer o encontrou escorregando para fora da cabana, deixando uma única rosa esculpida em gelo no parapeito da janela como promessa silenciosa de que retornaria com o que precisasse. Caminhou sob céus pálidos em direção às montanhas, cada passo um voto contra o frio que tentava silenciar sua coragem. Então a agulha da bússola se voltou para o norte, e Jonas avançou para um mundo além de mapas e refúgios seguros.

Trono de Gelo e Fogo
Jonas escalou cada vez mais alto nas Montanhas Rochosas, onde o vento esculpia formas fantasmagóricas na neve e nuvens se reuniam como velas à deriva. A cada milha, a bússola brilhava com mais intensidade, sua agulha prateada tremendo com determinação. Na terceira manhã, ele alcançou o topo de uma crista congelada e avistou um palácio de gelo erguendo-se no fundo do vale — torres de pináculos cristalinos capturando a luz do amanhecer e fragmentando-a em fitas de lavanda e dourado pálido. O ar vibrava com magia enquanto Jonas se aproximava dos portões do palácio, cada passo afundando na neve, densa de promessas e perigos. Ele pensou nos fragmentos que já havia recuperado — oito dos dez cacos do espelho, cada um zumbindo com memórias e anseios. Se falhasse agora, seu poder se voltaria para dentro e congelaria os últimos vestígios de sua humanidade. Ele tocou o punho de sua faca, forjada por suas próprias mãos, afastando a geada que obscurecia as runas gravadas na lâmina. Jonas respirou fundo e cruzou o limiar da sala do trono. Tetos abobadados erguiam-se acima, esculpidos em gelo vivo com padrões ondulantes que imitavam as luzes do norte. No centro da sala, erguia-se o trono da Rainha: um assento de cristal puro apoiado num estrado de geada. Atrás dele, a neve caía para cima, um aguaceiro silencioso de flocos cintilantes que desafiavam a gravidade. E ali, sentada no trono, estava a própria Rainha da Neve — uma figura de graça penetrante, envolta em campos de nevasca giratória, seus olhos tão brilhantes e frios quanto diamantes. O coração de Jonas martelava enquanto ele dava passos adiante, cada pisada ecoando como trovão sobre um lago congelado. Ele chamou seu nome, a voz vacilante, porém firme. A Rainha sorriu — um arco de gelo que cintilava como vidro quebrado — e o acenou para mais perto. Os fragmentos finais jaziaam a seus pés, cada pedaço refletindo um momento que ele ainda não vivera: o calor de uma amizade ainda inexperiente, a coragem que precisaria para encarar sua própria fragilidade. Jonas avançou para agarrar os cacos do espelho, e o chão tremeu enquanto o gelo gemia sob o peso de sua determinação. A Rainha ergueu-se, sua presença uma redemoinho de geada e luz estelar, e invocou um vento que ameaçou apagar seu fogo. Mas Jonas cravou sua lâmina no chão, canalizando calor de seu interior até que o gelo ao redor estremeceu. Com um grito que reverberou por séculos, ergueu os fragmentos e pronunciou as palavras que aprendera no verso da eremita. A luz explodiu das peças do espelho, costurando cada fissura com veias de prata incandescente e chamas quentes. A Rainha vacilou, sua coroa de gelo derretendo em uma única lágrima que escorreu pela face e caiu no chão em uma gota de fogo azul. Naquele instante, Jonas sentiu a maldição se desfazer em suas veias, e os cacos se reunirem em um todo: o Espelho da Rainha da Neve, renascido pelas suas mãos. Ele o colocou diante dela no estrado, a superfície tão clara e reluzente quanto um lago de verão. A Rainha ajoelhou-se e tocou o vidro, os olhos cheios de pesar e gratidão, e todos os salões congelados se descongelaram num só sopro. Uma aura de calor floresceu pela montanha, varrendo os desfiladeiros rochosos e chegando às cidades adormecidas de Frostvale. Jonas permaneceu sob o céu aberto, sua maldição desfeita, seu destino reconquistado, pronto para voltar para casa a um mundo que nunca mais seria o mesmo.

Conclusão
À medida que os suaves raios do amanhecer se derramavam sobre os picos rochosos, Jonas sentiu o calor florescer sob sua pele mais uma vez. Os fragmentos do Espelho da Rainha da Neve jazia íntegros ao seu lado, sua dança de geada e chama silenciada por sua coragem e compaixão. A própria Rainha, liberta do peso do inverno infinito, ofereceu a Jonas uma bênção final: que todo coração que ele tocasse encontrasse seu próprio caminho das ruínas à luz. Com o espelho seguro às costas, ele iniciou a longa descida para Frostvale, onde as chaminés fumegariam em promessa de lar e aconchego. Ao longo da trilha sinuosa, refletiu sobre as jornadas percorridas e o peso das escolhas carregadas em mãos frágeis. Não mais o fragmento dentro dele sussurrava poder glacial; em vez disso, cantava de esperança renascida e da resiliência que floresce quando se ousa remendar os pedaços de um reflexo estilhaçado. Nos anos que se seguiram, Jonas contaria sua história ao redor de fogueiras crepitantes, repassando a verdade de que até a maldição mais fria pode ceder a um único ato de redenção. E, embora a neve cobrisse Frostvale a cada inverno, seu povo sorriria sabendo que a luz pode ser encontrada mesmo na geada mais profunda, e que todo coração partido carrega as sementes de sua própria redenção.